Uma visão subjetiva
Neste texto gostaria de escrever sobre algo que venho percebendo nos últimos tempos.
Não é de hoje que somos sistematicamente submetidas a um forte apelo pela valorização da estética.
Abrimos as revistas, ligamos a TV, olhamos outdoors pelas ruas e lá estão expostos corpos esquálidos como ideal de perfeição feminina, sem falar do culto à malhação - imagens que pouco refletem os padrões reais da grande maioria da população.
A cada dia proliferam academias, clínicas de estética, novos tratamentos antienvelhecimento, antiestrias, “anti-isso”, “anti-aquilo...”ufa!!!
É tanta informação e novas propostas que, se não tivermos senso crítico, somos levadas a querer experimentar tudo ou, o que é pior, sentimos nossa auto-estima despencar.
Sem dúvida, a vaidade, a estética e o culto à saúde, são muito importantes. Isso só se torna um problema quando há uma supervalorização desses aspectos.
Não é raro que esse excesso de preocupação com a beleza e a estética esteja a serviço de evitar confrontos com a realidade, ou com sentimentos de frustração, medo, angústias e inseguranças.
E essa parece ser uma questão do mundo atual. Basta olharmos para a incidência cada vez maior e mais precoce do número de casos de transtornos alimentares e depressões.
É inequívoco que essas patologias têm como causa dificuldades internas, muitas profundas, mas que também são reforçadas por valores culturais, que chamarei aqui de ditadura da beleza.
Constantemente recebo em meu consultório mulheres inseguras, com a auto-estima bastante comprometida, em geral, sozinhas, em busca de um parceiro. Não atender a esses padrões, muitas vezes compõe a lista de fatores que minam sua segurança. Não conseguem valorizar sua beleza, nem mesmo outros aspectos tão interessantes de suas personalidades!
Fico pensando o quanto a valorização desses atributos externos está tão arraigada em nossa consciência que deixamos de olhar para o que realmente importa: a essência, que se encontra dentro de cada um de nós!
Isso sem falar nos contos de fadas, que mostram como ideal do modelo feminino, princesas loiras, de cabelos lisos, magrinhas, passivas, cujo único desejo é encontrar um lindo príncipe encantado: forte, valente, protetor, bonito, etc. Quase sempre são personagens sem identidade própria, sem atitude e esvaziadas de conteúdo.
E o que dizer das bruxas más que são sempre feias...
Contudo, ouso dizer que há uma centelha de mudança brilhando em nossas consciências...
Shrek – o filme - é um exemplo disso. Trata-se de um conto de fadas moderno, que polariza com essa valorização do ideal de beleza e põe em questão o que é belo e verdadeiro em e para cada um de nós. Parece conter um novo paradigma, já que mostra a multiplicidade da natureza humana em cada personagem.
Fiona é uma princesa que carrega um segredo: sua dupla natureza. De dia é uma “linda” princesa, à noite transforma-se em um “ogro”. Foi atingida pelo feitiço de uma bruxa que disse que só encontraria sua essência quando fosse beijada por um príncipe.
Acredita, assim como todos que estão à sua volta, que sua verdadeira identidade é a de princesa. Entretanto, é salva por Shrek, um ogro que também acredita não ser o seu príncipe, pois é feio, não tem bons modos, é grosseiro e mora em um pântano.
Ocorre que ambos se apaixonam e vão descobrindo a beleza de ser quem se é de verdade.
Fiona, ora é uma princesa, ora é uma “ogra” gordinha e verde. Independentemente de sua aparência mostra-se uma mulher forte, dona do seu próprio nariz, determinada, mas que em nenhum momento perde sua feminilidade, tampouco sua beleza.
Shrek, apesar de aparentemente grotesco é doce, sensível e aprende a reconhecer e demonstrar suas inseguranças e fragilidades, entrando em contato com seus sentimentos mais profundos.
Este conto começa a partir do fim dos contos de fada tradicionais, pois é a partir do momento em que a princesa é salva que começam os problemas e se desenvolve a trama interna de cada um dos personagens.
O despertar desse amor, em um primeiro momento, deixa-os confusos, provocando um questionamento a respeito de quem são e do que sentem. Conseqüentemente, inicia-se um processo de transformação em cada um deles.
Ambos podem se olhar e se encantar com o que está além das aparências. Vivem intensos conflitos internos; não sabem se conseguirão continuar a atender as expectativas externas; não podem mais acreditar em suas idéias preconcebidas; deparam-se com seus dramas existenciais e, por várias vezes, põem em dúvida o que estão sentindo e percebendo.
Fiona descobre que não é apenas aquela princesa que acreditava ser, mas escolhe, com consciência, assumir sua verdadeira identidade.
Shrek não precisa mais se esconder no pântano e aos poucos vai deixando cair suas defesas, se envolvendo com todos aqueles que despertam seu afeto.
Ambos vivem um processo de ampliação de suas consciências e encontro com o “Si-Mesmo”, cumprindo seu processo de individuação, ou seja, encontram-se com o que há de mais verdadeiro dentro de si.
Uma característica a ser ressaltada nesse conto é a valorização dos aspectos internos em detrimento dos externos, assim como dos aspectos existenciais em detrimento da estética.
Algumas mulheres buscam viver um conto de fadas ou uma realidade imaginária e, muitas vezes, sustentam essa posição para fugir do contato inevitável com uma parte da realidade.
Mas, de verdade, como no conto, somos todas um pouco princesas e um pouco “ogras”! Isto é, todas nós temos aspectos que acreditamos não fazer parte de nossa personalidade, mas que nos refletem sim, e que devem ser vistos, aceitos, acolhidos e integrados à nossa consciência. Como disse em um de seus livros o psiquiatra suíço Carl G. Jung, “podemos encontrar verdadeiras pérolas na sombra”.
Essa é uma história que enfatiza a importância da reflexão e do contato com o universo interno como possibilidade de transformação. Não apenas do ponto de vista individual, mas da consciência coletiva, uma vez que a transformação ocorrida dentro de Shrek e Fiona desencadeia uma mudança de consciência em todos os outros personagens.
Shrek – o filme - reflete sobre o que é o belo, sobre o feminino, o masculino, o amor, a amizade, e, acima de tudo, sobre a possibilidade de se conviver com as diferenças sem julgamentos de valor.
Acredito que manifestações e produções como essa possam realmente ser o prenúncio de uma consciência de alteridade, na qual os diferentes podem conviver, coexistir, sem necessidade de exclusão dos diversos atributos da complexidade humana.