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  • samarajorge

Nos últimos dias assisti às duas temporadas de Bridgerton.

A princípio, uma série de época, onde os romances seriam o ponto central.

Porém, além dos romances, dos cenários e figurinos lindos, me encantou (e me angustiou) a discussão sobre o papel da mulher na sociedade, o feminino em cada uma delas e o drama psicológico dos personagens.

Muitos deles, os masculinos e os femininos, de alguma forma, buscam a si mesmos e carregam um trauma, uma dor profunda, causada, sobretudo pelas expectativas, padrões e regras de uma rígida sociedade patriarcal, que prescinde, ignora e tenta aniquilar a individualidade.



Imagem: Aminah Dantzler


As relações se dão através do cumprimento do dever e do, inevitável, destino imposto a cada um.

Uma personagem que simboliza isso de forma muito contundente é Miss Thompson, parente da família Featherington.

Grávida, tenta de todas as maneiras esperar pelo homem que ama, que foi para a guerra, mas voltaria para se casar com ela, mesmo sem saber que esperava um filho dele. Apesar das constantes humilhações que sofre, mantém sua determinação e dignidade, até que, sem saída, é engolida pelo coletivo. Não há lugar para uma mulher, solteira, grávida, em uma sociedade que nega a sexualidade feminina, e que só a enxerga como alguém, cuja função, é estar a serviço do homem e procriar. Principalmente nas famílias mais abastadas.

Não por acaso, Miss Thompson foi parar naquela casa, que é um grande palco de toda a sombra coletiva. Sua maior algoz é Lady Featherington, que, a meu ver, com sua Persona fortemente fixada, que impede a sombra de ser integrada, é a representação suprema da sociedade retratada na série.

Parece haver dois mundos.

A Persona é a grande protagonista da alta sociedade daquela época. A condição humana com seus fracassos, medos, inseguranças, vícios, comportamentos escusos, assim como Eros, a espontaneidade, os desejos e a individualidade habitam as sombras. Tudo o que não faz parte do que é permitido ser visto, é secreto, mas, como sabemos, não deixa de existir. E pulsa por aparecer, se expressar.

Desse ponto de vista, Lady Wisthledon é imprescindível. Carrega em si o arquétipo do Trickster (aquele que prega peças e transgride as regras sociais). Através de sua identidade secreta, traz à tona as mazelas sociais e revela as sombras, com toda a sua ironia e maledicência. E aguça a curiosidade de todos. Está em todos os lugares, sabe de tudo o que acontece. Parece estar a serviço do Self, o arquétipo da totalidade, que tem como função principal, desenvolver a consciência, permitindo o encontro com o mais verdadeiro e essencial que existe em nós, individualmente e coletivamente, buscando juntar os mundos e promovendo a integração da Personalidade.


Pensando nos arquétipos do feminino é Hera quem reina. Como já falei em outro texto, Hera é o arquétipo da esposa. Na sociedade patriarcal as deusas estão todas feridas. Assim como na série, as mulheres que têm esse aspecto (da ferida de Hera), muito forte em seus psiquismos, casam-se com o casamento, com o papel de esposa e com o marido (mas não necessariamente, com o amado). Essas mulheres Hera destinam, todas, a sua força e poder para a manutenção das regras impostas pelo patriarcado, sem a consciência de que, cada vez mais, aprofundam e perpetuam a ferida e a dor.

Porém, uma mulher Hera chamou minha atenção, por viver esse arquétipo de forma mais integrada, foi Lady Violet Bridgerton. Viveu com seu marido um amor verdadeiro, onde a troca, o companheirismo, a inteireza e a lealdade estavam presentes. E teve a experiência profunda do casamento, tão importante para Hera, mas contemplou à Afrodite, permitindo-se experenciar a paixão e o amor. Quando ele morre, sua dor é tão grande, que não consegue conceber sua existência sem a presença do marido amado, apesar de seus oito filhos. Contudo, parece que após viver um intenso período de luto, atende ao chamado de Deméter (o arquétipo da mãe) e consegue seguir. Embora continue adaptada aos padrões sociais, sua Deméter também parece ir se integrando a cada episódio, particularmente com Anthony, seu filho mais velho. Dentro do contexto em que vive e de suas possibilidades, ela dá o seu melhor. Enxerga cada filho em sua singularidade, tem intervenções afetivas, preocupa-se e é empática com cada um deles.

Não por outra razão, seus filhos e filhas acham espaço na família para questionar o status quo.

Eloise, por exemplo, é uma combinação de Atená - intelectual, inteligente, questionadora, curiosa, vive com o nariz enfiado nos livros - e Ártemis - feminista, anseia por liberdade, autonomia, fala o que tem vontade, expressa a sua autenticidade e força. Tem interesse por entender as lutas e injustiças sociais. Embora seja sensível e empática, é corajosa, determinada e não se deixa dominar. Os espartilhos parecem sufocar sua alma livre.

Através dela e dos lugares pelos quais transita, fora dos portões de sua residência luxuosa, podemos observar os primeiros passos da luta pelos direitos das mulheres, fagulhas de questionamentos, despontando uma consciência, que dois séculos depois, ainda tentamos fortalecer e integrar.


Ou Daphne, que vive a sua passagem de menina para mulher. A narrativa de sua personagem lembra muito o mito de Eros e Psiquê. A adolescente, ingênua, sendo devidamente preparada para cumprir o seu papel social e que não questiona seu destino. Quando conhece o Duque Simon Hastings, um verdadeiro Eros, começa a entrar em contato com seus sentimentos e desejos e, especialmente, com a clareza de que sua busca não é apenas pelo casamento, mas pela união através do amor. A paixão por Simon e a descoberta da própria sexualidade dão início ao seu processo de desenvolvimento e


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  • samarajorge

Crédito: thegreats.co - Pinterest

Essa semana, após um atendimento, onde esse tema foi o assunto da sessão, e presenciar um acontecimento ocorrido com uma pessoa bastante próxima, fiquei pensando como o preconceito é brutal e pode ser devastador para quem o sente na pele.


Por essa razão decidi trazer essa reflexão para conversar com vocês.


Será bom trocar depoimentos e experiências.



O QUE DEFINE O PRECONCEITO?


O preconceito nada mais é do que uma ideia pré-concebida. Estereótipos são criados e atribuídos a alguém ou a algum grupo, mediante um juízo de valor negativo, pautado na ignorância (falta de conhecimento). As consequências disso são a intolerância e a exclusão do que é diferente dos padrões vigentes de uma sociedade, em uma determinada época.


Ninguém nasce preconceituoso. É algo aprendido e passado através de idéias, modelos e atitudes da família, dos grupos e da sociedade em geral.


Infelizmente a mídia e as redes sociais podem contribuir muito para a sua disseminação, quando reforça toda a sorte de padrões e elege uma verdade, um jeito de ser, uma forma de amar, uma crença, um tipo de beleza, o que está na moda, o status social, a “melhor” aparência, a adequação, etc.


E o pior, é que isso, às vezes, vem em mensagens subliminares que, a grande maioria de nós, sequer se dá conta.


Se já é perverso o preconceito explícito, muitas vezes expresso violentamente, o velado é tanto quanto, pois pode ter roupagens de boas intenções, pode ser negado e justificado, colocando a vítima em posição de questionar a própria percepção a respeito de si mesma,e do ambiente que a cerca.



O PRECONCEITO ESTÁ DIRETAMENTE RELACIONADO À INTOLERÂNCIA E NÃO DIALOGA COM A DIVERSIDADE.


Todos nós deveríamos enxergar e respeitar o outro como um igual, do ponto de vista humano, mas também como um ser singular, com suas particularidades, sua personalidade e sua individualidade.


Isso não acontece quando a intolerância está presente, pois é ela que leva um indivíduo a julgar o que é diferente de si mesmo, de suas próprias crenças e ideias. Essa postura leva-o a enrijecer suas convicções e a entender como errado, doente, feio, perigoso, motivo de chacota e humilhação, tudo o que não o ecoa.



VAMOS FAZER UM EXERCÍCIO DE REFLEXÃO?


Concordamos com o fato de que cada um de nós tem sua própria digital, certo?. Porém, da mesma forma que não existem duas digitais iguais, não existem pessoas exatamente iguais. Nem mesmo gêmeos monozigóticos são absolutamente idênticos em tudo. Cada pessoa é uma individualidade e somos um diferente do outro, tanto quanto são diferentes nossas digitais.



Pois bem, se pensarmos na digital como um símbolo da nossa individualidade, podemos dizer que existe uma digital/individualidade melhor que outra? As digitais de um preto, de um gay, de um nordestino, de um homem, de uma mulher, de um pobre, de um rico, a minha ou a sua são diferentes, mas não melhores ou piores, certas ou erradas, entre si.



Por que razão, então, as pessoas são julgadas por serem isso ou aquilo?


Quem atribui características e adjetivos negativos a alguém, sem conhecimento prévio, por sua sexualidade, cor, etnia,aparência, idade, condição social ou financeira, etc? Resposta: O PRECONCEITO.


É ele que não acolhe, rejeita.


Que não ama, odeia


Que não inclui, exclui.


Que não respeita, humilha.


Que categoriza, julga, agride, machuca e rotula, de forma cruel.Tão cruel, que faz com que os próprios indivíduos pertencentes aos grupos discriminados, em algum momento de suas vidas, sintam-se como são vistos.


Infelizmente, são tantos os exemplos que eu mesma já testemunhei…


Uma pessoa negra que acreditava ser inferior a uma branca. E, também, o branco que se acreditava superior ao negro.


Uma adolescente, que morava na favela, e entendia que seus estudos haviam chegado ao fim, quando acabou o ensino médio, pois nem mesmo se permitia pensar se queria, ou não, tentar uma universidade.


Um homossexual que pensava haver algo errado com sua forma de amar, ou outro, que ficava extremamente feliz quando era bem tratado por alguém, quando isso deveria ser o esperado, e não o contrário.



Ou ainda, uma pessoa gorda, que passou a vida tentando emagrecer, buscando “estar bonita" quando, na verdade, já era linda e nunca considerou a existência de diferentes tipos de corpos e belezas.



O PRECONCEITO ROUBA A AUTO-ESTIMA E PREJUDICA A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE DE UM INDIVÍDUO.


Sabemos que a forma como somos espelhados por nossos pais, família, amigos e sociedade, é fator fundamental para a formação de nossa identidade e construção de uma auto-estima saudável. “Aprendemos” a nos reconhecer como fomos vistos. Quando uma pessoa é vítima de preconceito em qualquer fase da vida, pode ser profundamente afetada, e passar a se enxergar com lentes que distorcem sua existência. Isso pode levar a quadros de depressão, isolamento, submissão a relações abusivas de qualquer natureza e, até mesmo, ao suicídio.


Alguns exemplos de preconceitos:


  • racismo (contra negros)

  • misoginia e machismo (contra mulheres)

  • gordofobia (contra corpos gordos)

  • homofobia (contra homossexuais)

  • transfobia (contra pessoas trans)

  • etarismo (contra grupos de determinada faixa etária)

  • religioso (no Brasil a intolerância é maior com as religiões de origem africana)

  • social (contra classes sociais)

  • capacitismo (contra deficientes)

  • xenofobia (contra estrangeiros e migrantes)


FORMAS DE LIDAR COM O PRECONCEITO


Todos nós podemos nos perceber, de alguma forma, preconceituosos, afinal somos humanos,


Porém, o que diferencia uma pessoa que age preconceituosamente e outra que não atua o seu preconceito,é a consciência.


Assim, o primeiro e mais importante passo, é reconhecer e assumir essa condição. Isso nos ajudará a olhar para dentro de nós mesmos, ressignificando nossos sentimentos, pensamentos e ações.


Outra atitude essencial, para lidarmos com o preconceito, é buscar informações sobre o que nos incomoda em determinadas pessoas ou grupos que são alvos da intolerância. Por exemplo: se sua “opinião” a respeito de um casal gay é a de que ali existe uma doença ou um problema,vá atrás de entender o que diz a ciência, o que dizem os especialistas.


Uma qualidade que precisamos desenvolver muito em nossas personalidades é olhar verdadeiramente para o outro. Tentar conhecer a realidade das pessoas que sofrem com o preconceito, ouvir suas histórias, aproximar-se de seu sofrimento, através de uma atitude empática, pode ser de grande ajuda para desmistificar ideias e desconstruir estigmas e estereótipos que carregamos.


E, finalmente, enxergar o outro como um ser humano. Dentro de cada gay, de cada preto, de cada pobre, de cada idoso, de cada deficiente, de cada corpo, de cada mulher, de cada pessoa, enfim, existe uma alma que precisa ser respeitada e tocada com delicadeza e amor.


Se não for assim, só nos restam as relações de poder e a barbárie.


E, como tão bem nos disse Jung: “Onde o amor impera, não há desejo de poder; e onde o poder predomina há falta de amor. Um é a sombra do outro.”

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  • samarajorge

Updated: Mar 19, 2022

Neste mês de março completamos dois anos de pandemia no Brasil.


Na enquete feita nos stories sobre temas e assuntos que gostariam de ver discutidos aqui, algumas sugestões interessantes apareceram. Uma delas foi sobre os impactos psíquicos da pandemia. Embora não existam muitos estudos e pesquisas, pensei em compartilhar com vocês um pouco da minha vivência no consultório, ao longo desse tempo.

Fiquem à vontade para comentar e dividir suas experiências conosco.

Créditos: Bea_1983 - Pinterest

A pandemia trouxe uma imensa desordem para a humanidade. De repente, o mundo transformou-se em um lugar perigoso, onde ninguém sabia praticamente nada a respeito do novo vírus e suas consequências, inclusive os profissionais da ciência e da saúde.


Mergulhamos em uma situação ameaçadora, onde o medo de contrair a COVID-19, a morte, a incerteza de quem era e onde estava esse “inimigo” permearam todos os momentos de nossas vidas.


A mudança foi repentina e brutal. Algumas pessoas se adaptaram com menos sofrimento que outras, porém, a cada dia que passava, novas questões, angústias e emoções apareciam.

Créditos: rawpixel - Pinterest

O primeiro grande impacto da pandemia foi a perda da liberdade. Vários pacientes diziam sentir que suas vidas haviam sido roubadas. Para algumas pessoas, a possibilidade de não sair, e ser obrigado a manter o isolamento social, deflagrou uma sensação de absoluta falta de controle sobre a própria vida, gerando sentimentos de pânico e angústia.


Naquele momento o desafio era colocar Vida na vida que levaríamos pelos próximos tempos, que aliás, nenhum de nós tinha a menor ideia de que tempo seria esse.


No início, estabelecer uma nova rotina, cuidar e organizar a casa, colocar pendências em dia, fazer alguns cursos, entre outras atividades, ajudaram a acalmar a sensação de falta de controle e liberdade.


Créditos: Emiliano Ponzi - Pinterest

Entretanto, não podemos dizer que houve uma única realidade, na verdade foram muitas. Por isso, gostaria de abrir um parêntese, aqui, para deixar claro que estou falando de um recorte dentro dessas diversas realidades. A parte à qual tive acesso e que pude observar.


Alguns conseguiram proteger-se melhor em suas casas, com suas famílias e atividades profissionais garantidas. Outros, infelizmente, não. O medo do desemprego e a perda concreta de suas ocupações, assim como condições inadequadas para o isolamento, cuidados com a saúde, preocupações com a subsistência de familiares, falta de acesso a hospitais e parcos recursos financeiros potencializaram muito o medo da pandemia, e deixaram muitas famílias desesperadas.


Os profissionais de saúde, principalmente, aqueles que estavam atuando na linha de frente, estavam extenuados, desesperados, em meio à imensa jornada de trabalho e tantas mortes. Sentiam-se impotentes, diante da impossibilidade de fazer o impossível. Sim, porque eles todos eles, heroicamente, sacrificaram suas família e suas próprias vidas nessa luta. O resultado disso foram os inúmeros casos de burnout, depressão e ansiedade nesses profissionais.

Créditos: Arte & Luso - Pinterest

Ao mesmo tempo, do ponto de vista coletivo, pude observar em muitas pessoas, uma preocupação social maior, um olhar mais empático e solidário, bem como, várias ações no sentido de levar algum alento para famílias em situações de desamparo e vulnerabilidade.


Outro ponto muito importante, foi o confinamento.


Por um lado, a convivência intensa, a ausência de espaços próprios e de lazer, a impossibilidade de encontrar pessoas queridas e a falta de privacidade, deflagraram muitos conflitos familiares. Muitas famílias tiveram bastante dificuldade com essa nova configuração da vida, o que levou a um padrão de relacionamento mais agressivo e, em muitos casos, a um aumento na ocorrência e na gravidade dos casos de violência doméstica.

Créditos: Washington Post - Pinterest

Um outro ponto importante para as famílias com filhos pequenos foi o home office e a falta de suporte com as crianças. Infelizmente, como quase sempre acontece, as mulheres foram as mais prejudicadas. Não pretendo fazer generalizações e em muitos casos isso não acontece, mas na maior parte das vezes, os cuidados com os filhos e os afazeres domésticos ainda são vistos como responsabilidades da mulher. Seja pela visão dos homens ou delas próprias. Aqui vou entrar em uma reflexão que não diz respeito só à pandemia, mas que se evidenciou muito nesse período. Atendi muitas mulheres, absolutamente esgotadas, sentindo-se incapazes e incompetentes por não darem conta de tudo. Como brincar com os filhos, cuidar da alimentação, da limpeza e organização da casa, providenciar o que faltava, pagar contas, acompanhar as aulas online, lições de casa, do próprio trabalho, reuniões e de toda a mudança que as havia arremessado em um mar de tarefas infinitas?


Para muitas foi uma oportunidade de rever as próprias crenças e as lentes que usavam para olharem a si mesmas e ao mundo, realinhando exigências e expectativas.


Por outro lado, pessoas que moravam sozinhas passaram a se sentir solitárias, ainda que, antes da pandemia, estivessem confortáveis com essa condição. Além da privação social, o isolamento afetivo pode ser devastador.

Créditos: Manjiri - Pinterest

É certo que um dos alimentos mais importantes para a alma são as trocas afetivas. Contatos físicos, abraços, beijos, proximidade, olho no olho, o toque carinhoso.


A ausência de dois anos dessa vivência trouxe consequências sérias para a grande maioria das pessoas, inclusive o aparecimento de sintomas depressivos, ansiosos e profundos sentimentos de solidão e desamparo.


Os solteiros e solteiras, de uma forma geral, sofreram com a falta de perspectiva de conhecer alguém com quem pudessem vir a ter um relacionamento afetivo. E, um dos desdobramentos disso, para uma parte das mulheres, foi a preocupação com seu relógio biológico, em função do desejo de ter filhos e a ameaça de não ter tempo suficiente para encontrar um parceiro, conhecer, construir e aprofundar uma relação, para, então, engravidar.


Outro grupo que me parece motivo de preocupação são os adolescentes e jovens. Sabemos que uma das etapas da formação de nossa identidade passa pelo grupo, na verdade, pela sensação de pertencimento a um grupo. Há uma necessidade de convivência social, de se descobrir no mundo, de viver novas experiências. Isso começa na adolescência e é uma vivência fundamental para o reconhecimento de quem somos, do espelhamento e desenvolvimento de nossas características, potenciais, sentimentos e ações. É nessa fase que acontecem os primeiros amores, a descoberta da sexualidade, os primeiros questionamentos existenciais, a vida fora dos domínios parentais, a vida acadêmica. Isso tudo, de certa forma, lhes foi roubado pela pandemia e o confinamento. Como será daqui para frente, então? Não sabemos…


Assim como não sabemos como serão as crianças que perderam seus pais para o coronavírus. Uma geração de crianças órfãs. Sem o pai, a mãe ou ambos. Muitas estão em processos terapêuticos, mesmo as pequeninas, tentando elaborar, minim


amente, o que é tudo isso que fez suas vidinhas começarem ou mudarem tão abruptamente, mas outras tantas não têm o mínimo acesso a acompanhamentos de nenhum tipo.

Créditos: Vicki Davidson - Pinterest

O que sabemos é que conhecemos um nível de sofrimento intenso e diferente. Inclusive no sentido de que todos compartilhamos as mesmas dores, as mesmas estranhezas, ainda que em realidades diferentes.


Observei um sentimento comum em diversos pacientes e pessoas do meu convívio, quando alguém importante afetivamente estava hospitalizado com Covid-19, e não eram permitidos acompanhantes e visitas: a culpa.


Diante da impossibilidade de estar ao lado, cuidar, acompanhar o que está acontecendo e garantir um ambiente de segurança e afeto ao ente querido, muitas fantasias sobre como o doente estava se sentindo (abandonado, em sua maioria) e sendo tratado, vinham à tona. A distância e a sensação de impotência são extremamente desestruturantes, sobretudo quando a morte ocorre. E aí temos um outro momento de muita dor: a impossibilidade da despedida.


Os rituais fúnebres são muito importantes e têm uma razão de ser. Têm a função de ajudar a concretizar a morte, de permitir despedidas, da família receber apoio, carinho, ouvir histórias e lembranças deixadas em cada um que conviveu com aquela pessoa. É como se fosse dado um lugar onde aquele sofrimento pudesse ser expressado, acolhido e compartilhado. Ajuda a encerrar o ciclo e iniciar a elaboração do luto. Sem esses ritos de passagem, o que fica é uma ausência, um esvaziamento, onde o fim parece não se concretizar. Especialmente pela forma como lidamos com a morte.

Créditos: wattpad - Pinterest

Em nossa cultura tendemos a não entrar em contato com a nossa própria finitude, nem a das pessoas que amamos. A morte não é um tema que faz parte de nossas vidas, o que a torna ainda mais difícil de aceitar.


O luto é um processo que tem várias etapas, e se inicia nos rituais de despedida. Com o impeditivo desse primeiro momento, a elaboração do luto na pandemia tem sido mais difícil. Em muitos casos foi preciso criar novos ritos de passagem, que simbolizassem a despedida e dessem um lugar para a morte.


Finalmente, algo comum entre as pessoas, que também pude observar foram os sonhos. Não foi uma pesquisa, mas apenas um exercício de observação.


Os sonhos refletiam o estado em que as pessoas se encontravam e como estavam se relacionando com a vida e com si mesmos naquele momento.


No início da pandemia, eram relatados sonhos com temas como tsunamis, enchentes, invasões. O medo, tentativas de fuga, de busca de lugares protegidos eram recorrentes.


Logo depois, aglomerações e máscaras foram muito presentes. As pessoas, ou o próprio sonhador, apareciam sem máscara, esqueciam de colocá-la ao sair ou perdiam pelo caminho. Muitas relataram que acordavam em pânico ao se perceber sem máscara nos sonhos.


Flores e pessoas mortas, casas muito desorganizadas e abandonadas, lugares escuros, tentativas de se comunicar com as pessoas e não conseguir, sonhos penumbrados, também foram temas no auge da pandemia. Indicavam estados depressivos, falta de vitalidade, medo, insegurança e confusão.

Créditos - Stylist - Pinterest

Atualmente tenho notado que os sonhos começam a ser mais leves e com elementos mais próximos do viver. Cenas relacionadas a nascimentos, crianças, encontros, grupos, praias, jardins, viagens, avião, cenários externos, aparecem com uma certa frequência.


A depressão, a ansiedade e episódios de pânico levaram muitas pessoas a buscarem psiquiatras e psicoterapeutas.

É indiscutível que, ao longo desse tempo, evidenciou-se a importância da saúde mental, do autoconhecimento, do contato com nossos sentimentos e emoções. Da necessidade de repensar nossos valores, nossas ações, reações, a forma como nos relacionamos conosco e com o outro. A importância da reflexão e da valorização do que realmente importa!

Créditos: rawpixel - Pinterest

A pandemia segue confrontando nossas ilusões de onipotência, nos fazendo pensar, e constatar que, na vida, não há controle sobre todas as coisas. Que, assim como Aquiles, também temos nossos pontos de vulnerabilidade e que nós, seres humanos, podemos muito, mas não podemos tudo.


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